Por Sofia Cupertino
Quem visitasse a Aldeia Verde
(Ladainha, MG) entre os dias 10 e 13 de Maio, encontraria quase toda a
comunidade mobilizada ao entorno de
computadores, máquinas de filmar e de fotografar, cadernos e lápis de cor. Durante
esse tempo, desde os mais novos até os mais velhos tiraram grande parte dos
seus dias para se dedicarem a um grupo de trabalho voltado para a produção de
um novo livro de cantos.
Já são três as publicações elaboradas a partir dos cantos tikmũ’ũn.
Cada uma das edições trazem cantos escritos na língua Maxakali e traduzidos
integralmente para português. Todas vêm acompanhadas de DVD´s com gravações de
todos os cantos presentes no livro. Além disso, levam ao público belas
ilustrações de vários artistas colaboradores da própria comunidade. Neste novo
trabalho, serão registrados e gravados
todos os cantos do conjunto do ritual Po'op, traduzido como
“macaco-espírito”.
O processo
Dias de trabalho intenso são
necessários para a construção de um livro como este. A produção acontece
durante encontros entre pesquisadores e a comunidade. Para isso é preciso ou
que os pesquisadores visitem as aldeias ou que alguns representantes viagem
para Belo Horizonte. Por isso, quando se reúnem, acadêmicos e indígenas
procuram aproveitar ao máximo o tempo juntos, como aconteceu no mês de Maio
de 2013, em que durante manhãs e tardes inteiras eram realizados trabalhos de
escuta atenta às gravações de cantos, de criação de ilustrações e de discussões
com os mais velhos.
Discussões e escuta atenciosa
O processo de transcrição dos
cantos é feito com bastante cuidado e rigor.
A comunidade e os pesquisadores compreendem a importância de que um
livro como este seja condizente aos cantos, à língua e ao seu sentido no contexto da sua execução.
A gravação dos cantos Po ´op aconteceu
no ano de 2010 e é a partir desse material que se faz a transcrição para o
livro. O professor, cineasta e pesquisador do Projeto de Documentação das
Línguas Indígenas (Prodoclin), Isael Maxakali, é um dos principais responsáveis por esse trabalho e é sua letra que vemos nos primeiros
registros ortográficos destes cantos:
Durante o encontro com
pesquisadores, Isael precisa escutar
atentamente as gravações para escrevê-los. Mas não é sozinho que trabalha:
outros membros mais velhos da comunidade costumam ficar bem próximos, acompanhando
atentamente a escrita. Muitas vezes, iniciam preocupadas discussões acerca das
palavras e do sentido dos cantos. Nos momentos de reflexão, a transcrição é
interrompida até que os envolvidos entrem em consenso, fazendo do processo uma
escuta não só ativa e mas também
coletiva, cujo resultado é um material cuidadosamente lapidado.
Os jovens e as imagens-canto
Além disso, enquanto os mais
velhos se debruçam sobre as letras, os mais jovens exploram traços, cores e
formas. Crianças, adolescentes e adultos espalham lápis de cores e canetas
pelas mesas, revezando entre linhas e coloridos, vão criando imagens-canto. Dos papéis vão surgindo um universo de capivaras, vacas, aves pequenas,
grandes, coloridas, homens brancos com suas armas e produtos, indígenas nas
estradas da cidade, plantas e mapas.
Ainda não sabemos ao certo que
canto irá ilustrar cada desenho (a tradução, nesse momento, ainda não foi feita). Mas o muito
que nos dizem as imagens já nos mostra um pouco do significado de alguns deles.
São desenhos-partitura que podem ser como uma extensão dos cantos. Trazem para o mundo das imagens fixas as
cenas que os cantos intensificam. Fixas, mas sempre em movimento: a vivacidade
das cores e dos traços nos dá a sensação de que os personagens estão prestes a
se descolar pelo mundo exterior. Pelos desenhos, o canto chega aos olhos.
Esta ilustração, por exemplo,
segundo eles, irá ilustrar o canto que dá voz a uma vaca. Disseram-nos que
neste canto, o animal fala sobre o seu dono. A vaca descreve como o fazendeiro
branco a olha durante horas a fio, fumando seu cigarro. Depois, diz como seu
criador resolve matá-la e vendê-la em troca de alguns presentes para sua
mulher, armas e outros objetos.
Filmagens e gravações
Neste período de trabalho, Isael também se dedicou à produção de vídeos , a gravações
de cantos e a pesquisa sobre suas origens, além de registro de narrações e de mitos e histórias.
Em um
dos dias, as meninas da aldeia se prepararam para cantar e serem filmadas. Pintaram
em seus rostos motivos usados também no mĩmãnãm (pau
de religião, trazidos pelos yãmĩyxop
- espíritos- em suas visitas às aldeias). Coloram seus vestidinhos vermelhos, costurados
pelas próprias mulheres da aldeia – como já é de costume usarem roupas
confeccionadas por elas mesmas. Sentadas lado a lado, foram acompanhando as
indicações e ensinamento das mais velhas, cantando, enquanto Isael registrava a
aula. Maísa Maxakali foi uma das mulheres que esteve presente durante toda a
gravação, acompanhando as meninas e lhes mostrando o caminho a ser cantado.
O vídeo produzido neste dia fará parte do material
audiovisual que acompanhará o livro didático “Cantos tikmũ’ũn para ver, ouvir,
pensar e agir”. Este livro é uma produção que integra as atividades do Projeto
“Ancestralidade e convivência no território tikmũ’ũn”, aprovado pelo MEC para
ser executado neste ano de 2013. A intenção é levar à comunidade escolar das
cidades próximas às aldeias, que os tikmũ’ũn precisam visitar e aonde gostam de ir, um pouco sobre a cultura Maxakali. Mas a
espinha dorsal dessa publicação são os cantos: todo o conteúdo parte deles. Daí a importância de materiais como esse, que mostrem ao publico como o vasto conhecimento contido nos cantos é transmitido para os mais jovens.
Outro canto foi gravado com o
intuito de promover material audiovisual para o livro didático: “O canto da
madioca”. A filmagem servirá de extensão visual para o capítulo do livro que
leva o título “Cantos para multiplicar as coisas que existem”. Isso porque
alguns cantos tikmũ’ũn parecem ressaltar a natureza diversa das coisas do mundo
e a individualidade que faz de cada ser uma existência única. Algumas letras nos
chamam a atenção para as diferenças, como os formatos das raízes de um pé de
mandioca que a primeira vista podem ser percebidos por nós como iguais ou muito
parecidos. Dessa vez o cenário não podia ser qualquer um: os cantores se
deslocaram para o mandiocal e lá foram filmados os cantos. Enquanto cantavam,
tiravam da terra a raiz de um dos pés da plantação. Foram apontando a variedade
de formatos de cada parte, como nos diz o a letra do canto:
O canto da madioca
debaixo do braço
levando uma raiz
grandona debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz
comprida debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz curta e
grossa debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz muito
grande debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz fina
debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz bem
escura debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz torta
debaixo do braço
debaixo do braço
levando raiz
achatada debaixo do braço
debaixo do braço
E o trabalho continua...
Outros filmes já estão por vir.
Isael gravou todo o processo de produção do fio de embaúba com as mulheres,
desde a escolha das árvores até a tecelagem de artefatos. O material já está
sendo traduzido e logo um novo documentário será disponibilizado para o
público. Além disso, Isael está acompanhando os belos trabalhos que as mulheres
vêm desenvolvendo com miçangas. A intenção é também produzir registros
audiovisuais deste processo.
Arte com miçangas
A
criatividade das artistas parece inesgotável. Em cada peça, uma variação nova
salta aos olhos. As cores são vivas como as dos desenhos; as combinações são
inusitadas e diversas. Os olhos não se cansam: quanto mais observamos,
mais descobrimos, mais nos
surpreendemos.
Este ano o Museu do índio forneceu novas miçangas para
que as mulheres possam dar continuidade
ao belo trabalho a que estão se dedicando. Algumas peças foram levadas para o
RJ para serem comercializadas. Para a seleção das obras a serem transportadas,
as mulheres preparam uma encantadora exposição. Espalharam seus trabalhos em
toalhas pelo chão e cobriram mesas com as cores e formas geométricas de bolsas,
porta-canetas, colares e pulseiras. Difícil mesmo foi escolher, pois cada peça
se mostrava única, gritando cores em quase movimento.
Ainda mais verde
Frutas, legumes, folhas e
principalmente, ervas medicinais são alguns dos tipos de plantas cultivados na
exuberante horta da Aldeia Verde. À primeira vista é até difícil distinguir os
canteiros, tão crescidas e vistosas já estão as culturas. São bananeiras
carregadas que erguem-se em meio às folhas de couve, enormes tufos de boldo que
se entrelaçam nos galhos de um pé de pimenta, já salpicado de frutas vermelhas.
Uma floresta de mandioca se espalha pela terra, se misturando aos pés de
pepino, de cacau, quiabo, tomate e de tantas outras espécies.
Parte de toda essa abundância se
deve aos cuidados do jardineiro Ailton. Já há dois anos foi contratado e trabalha para a Associação de moradores da Aldeia. Uma parcela dos alimentos
é vendida às cidades e serve como meio de arrecadação de verba para a aldeia.
Outra parte é consumida nas refeições
diárias, além de fornecer ervas necessárias para a prática medicinal tikmũ’ũn. Aliás, foi com elas que tudo começou: inicialmente, a horta era voltada apenas para o cultivo dessas plantas especiais, plantas que curam. Dona Noêmia Maxakali é uma das mulheres que possui grande domínio das propriedades benéficas das ervas. Enquanto caminha pelos cantiros, é capaz de nomeá-las todas, identificar seus efeitos e seu modo de preparo: uma é indicada para grávidas, outra para aliviar dores de cabeça, esta para o fígado...
Uma nova conquista
O
trabalho ocorria normalmente na tarde do dia 17, porém todos esperavam que as
atividades fossem interrompidas em algum momento. O motivo? O fruto de uma nova
conquista estava prestes a chegar. Era um carro. Mas não um meio de transporte
qualquer; e sim, um bem comunitário de uso exclusivo da Aldeia Verde.
A ação foi resultado de uma
parceria com a prefeitura de Ladainha. O atual prefeito de Ladainha, Waldir Nedir Oliveira, viria entregar
o tão esperado carro e orientar os novos proprietários quanto às suas
responsabilidades e foi recebido com alegria, aplausos e canto. O veículo vai
permanecer na Aldeia em tempo integral.
Além disso, um motorista contratado pela prefeitura ficará à disposição
dos moradores.
A nova
aquisição vai facilitar e muito os deslocamentos necessários dos tikmũ’ũn para
as cidades próximas. Um meio de transporte seguro é fundamental para a
manutenção da vida cotidiana e supressão de necessidades básicas dos seus
moradores. Agora, não dependerão da boa vontade de “caroneiros” para ir ao
mercado, à polícia ou a postos de saúde.
A boa
relação entre a comunidade e a prefeitura local é essencial para que as
conquistas continuem acontecendo. Faz-se necessário que o diálogo permaneça
constante, que as autoridades estejam abertas para ouvir e atender às muitas
demandas de Aldeia Verde e de outros grupos. Somente assim podem ter garantidos seu
bem-estar e as condições “necessárias a sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições”, conforme defende nossa constituição.