terça-feira, 18 de setembro de 2012

Elaborando uma Escrita Audiovisual Maxakali


Os povos Tikmũ‘ũn, que conhecemos como Maxakali, habitam o nordeste de Minas Gerais, quase na divisa com a Bahia, nos Municípios de Bertópolis, Santa Helena de Minas e Ladainha. já tiveram sua população reduzida a cerca de 60 pessoas por volta de 1950, mas hoje já são mais de 1500, e mesmo vivendo o tempo todo transitando pelas cidades vizinhas a suas aldeias, falam seu próprio idioma, o Maxakali. Estão separados em quatro reservas: Pradinho, Água Boa, Aldeia Verde e Cachoeirinha. Dentro de cada reserva pode haver várias aldeias, que, ao contrário das reservas que são cercadas pelo governo, são formadas por eles mesmos, e podem mudar de localização dentro da reserva, ou dar origem a novas aldeias, ou mesmo se desfazer, se eles decidirem assim.

Mulheres e crianças Maxakali participam de ritual na Aldeia Vila Nova,
enquanto Marilton Maxakali filma. Foto: João Duro Maxakali.
Os  territórios em que vivem já são devastados por fazendas há mais de 100 anos, e tem pouquíssima biodiversidade. Mas mesmo assim, através do seu complexo conjunto de cantos e mitos, eles atualizam de uma forma sofisticada seu conhecimento. Esses cantos descrevem, detalhadamente, uma infinidade de espécies vegetais e animais, dando provas de um conhecimento biológico e geográfico muito refinado. Só que esse conhecimento não é simplesmente transmitido aos mais jovens na língua maxakali. Ele é vivido nos rituais, de forma intensa, através principalmente dos cantos, e é dito numa linguagem ancestral dos espíritos, os yãmĩy. Para cada bicho, cada ser, há uma infinidade de cantos, trazidos à aldeia por esses yãmĩy para que os Maxakali experimentem esse conhecimento desse modo intenso, xamânico. Bem diferente da nossa forma estratificada e racional de conhecer as coisas.

Os Maxakali vivem e pensam o mundo a partir dessa relação que estabelecem com os yãmĩ(os espíritos), que representam não identidades fixas, mas um modo de se transformar e se relacionar. Por exemplo: o espírito-papagaio (Putuxop), quando chega à aldeia, traz consigo várias espécies de espíritos-papagaio, espíritos-pássaro e outros tipos de espírito com quem os espírito-papagaio gostam de conversar, trocar cantos, ideias, comida, e caçar... E cada um deles, por sua vez, tem um conjunto de cantos com aspectos da natureza do papagaio - ou de algum desses "agregados" -, experiências, olhares. Nunca dá pra todos cantarem tudo sempre, e é por isso que os Maxakali precisam tanto fazer ritual (yãmĩyxop) o tempo todo. Cada yãmĩé como se fosse um povo, uma natureza espiritual com capacidade de se transformar, se relacionar e conhecer as coisas de um jeito específico. yãmĩtem uma estética, uma forma e uma perspectiva sobre o mundo particulares. E os cantos desses yãmĩy é que são a sua sofisticada forma de conhecimento, e proporcionam a vivência xamânica a todos, que através deles - dos cantos - participam das viagens visionárias dos espíritos. O xamanismo é uma espécie de política cósmica, um modo de conhecer e se relacionar com o mundo. Essas viagens visionárias, ou xamânicas, são, na verdade, um modo de conhecer o mundo sem classificar as coisas: experimenta-se, troca-se de ponto-de-vista.


Josemar Maxakali filmando parte do território,
na Aldeia Vila Nova, em Janeiro de 2012.
Foto: Ana Carolina Estrela da Costa
A imagem, entre os maxakali, é um evento, uma “zona de intensidade”, uma “qualidade afetante” (Tugny, 94), e, como a gente vê nas etnografias que estudam esse tema, a visão xamânica é a principal aptidão no xamanismo ameríndio. Essa é a atividade xamanística: religião-ciência-política, diplomacia cósmica indígena, que consiste nessa espécie de tradução do mundo dos seres invisíveis, transporte para outros pontos de vista, troca de perspectiva, e que se dá por diversas ênfases, uma vez que um meio nunca está separado dos demais: cantos, gestos, fabricação de imagens, utilização de determinadas substâncias. Enquanto a vida da nossa sociedade, na qual reinam as condições modernas de produção - na perspectiva do Guy Debord (que escreveu sobre "A Sociedade do Espetáculo"), se anuncia como um acúmulo de espetáculos, o que é diretamente vivido “se esvaindo na fumaça da representação[1] - o pensamento indígena funde a imagem à vida, o acontecimento real à projeção imagética. Ao contrário do nosso entendimento da representação, nosso uso da escrita, e do nosso modelo que separa tão criteriosamente nosso conhecimento e nossas experiências sensoriais, o traçado indígena, mais que um registro, pode ser um caminho, por exemplo. Não existe o mundo das imagens e o mundo das coisas, do jeito que Platão separou pra gente. Em muitas sociedades amazônicas, os traços nos corpos e artefatos, ou desenhos, funcionam como os cantos, transformando esses corpos e artefatos presentes nos rituais ou transformando-se em caminhos percorridos pelos xamãs em suas viagens. 


Mulher se Pintando para video/ritual, durante período do projeto.
Foto: Marilton Maxakali.
A escrita ocidental pode ser considerada um processo metafórico, imagético, na medida em que representa nomes, que, por sua vez, representam coisas. No caso indígena, entretanto, em que a transmissão de cantos e traços é da mesma ordem de materialidade que a transmissão de alimentos, e as ideias da semiótica parecem não ser ferramentas suficientes para compreender as múltiplas relações presentes na sua escrita, ocorre o que se chama de regime de continuidade, que identifica o processo de escrita indígena como tendo uma natureza metonímica. A compreensão dessas relações é uma chave para a inclusão de conteúdos indígenas na nossa escola.

Se nossa escrita parece se contrapor ao conhecimento indígena, nossa escola impõe uma limitação à percepção e ao entendimento do mundo. Nas palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa:

“Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos do xamãs e depois querem que chegue a sua vez de ver os xapiripë. É assim que, apesar de muito antigas, as palavras dos xapiripë sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos. São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar”. (KOPENAWA, 2004, p. 01)

A partir dos projetos realizados pela Escola de Música da UFMG com os Tikmũ‘ũn, nos últimos 10 anos, coordenados pela profa. Rosângela Pereira de Tugny, constituiu-se um acervo enorme de gravação de video, que registra os rituais nas aldeias e as etapas dos processos de transcrição e tradução dos cantos. Nesse processo de pesquisa, são os pajés, anciãos e anciãs (yãyã e xukux) que determinam os rumos e o foco dos trabalhos, porque não temos dúvidas de que eles é que são os grandes doutores de todos esses conhecimentos. Isso traz, neste campo de interações entre a Universidade e a comunidade indígena, novas possibilidades no processo de construção e transmissão de saberes, de diálogo, de questionamento de modelos e discursos e de estruturação política, além de atrair os mais jovens e abrir um novo espaço para os mais velhos.

Josemar, Ismail, Marilton, Damazinho, João Duro e outros Maxakalis
 em ilha de edição montada na aldeia Vila Nova (T.I. de Pradinho)
 em janeiro de 2012. Foto: Ana Carolina Estrela da Costa. 
 
Desde Julho de 2011, o projeto Por uma Escrita Audiovisual Maxakali, do INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, em parceria com o PRODOCLIN, tem formado em técnicas de edição e captação de vídeo: professores Tikmũ‘ũn recém-formados curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFMG e jovens pesquisadores das aldeias. Desde as primeiras pesquisas de transcrição e tradução dos cantos, entendemos que edições do material audiovisual realizadas com total autonomia pelos tikmũ‘ũn revelariam mais sobre os seus modos de conhecimento. Materiais desta natureza poderiam integrar o  conjunto do material didático em universidades, escolas das redes de ensino fundamental e médio e nas aldeias, se de fato, a noção de inclusão do conhecimento indígena estiver posta como uma possibilidade de pensar  também suas formas de agir e circular. A noção de uma escrita audiovisual foi a proposta encontrada pra assegurar uma continuidade às pesquisas realizadas pelos Tikmũ‘ũn com a Universidade, podendo inclusive viabilizar que integrem programas de mestrado. Acreditamos sobretudo, que o que esta experiência traz à tona pode contribuir de forma significativa com reflexões sobre o curso de licenciatura indígena da UFMG e outras instâncias de inclusão de coletivos indígenas - assim como, acredito, de outros segmentos da sociedade branca que possivelmente ainda esperam transformações na Escola que possibilite uma efetiva inclusão de todos - na Universidade e na pesquisa.

O trabalho de registro é importante pelo constante e obstinado exercício de diálogo que possibilita entre o mundo branco e o mundo indígena, e é precisamente isso que os Maxakali fazem quando se apropriam de recursos tais como o Cinema. Para eles, a Câmera é mais uma possibilidade de transporte entre mundos, de troca, de experiência xamânica, e isso podemos perceber nas bem sucedidas experiências anteriores que fizeram no Cinema, através de outras propostas, oficinas e projetos: os premiados "Caçando Capivara" e "Tatakox", da Aldeia Vila Nova, "Kotkuphi" de Isael Maxakali, "Acordar do Dia", entre outros, revelam esse olhar que não busca a captura, mas a experimentação. Durante o projeto - e é o que se relata sobre projetos de cinema indígena -, muitos rituais são feitos e refeitos, os velhos recuperam um pouco do prestígio roubado pela TV, com a descoberta da linguagem cinematográfica, e histórias são recontadas e relembradas. As crianças aos poucos percebem o interesse dos brancos e dos mais velhos, e as práticas rituais, as conversas, as historias começam a atrair sua atenção. Porque, afinal, é assim que acontece a educação indígena.

Um projeto como este questiona insistentemente a diferença entre a educação branca e a educação indígena não como uma simples diferença entre uma "cultura escrita" e uma "cultura oral", porque as culturas indígenas nunca foram culturas sem escrita. O vídeo passa a ser uma tecnologia de escrita a mais entre os Tikmũ‘ũn: é uma possibilidade xamãnica, e por isso política, de diálogo com os brancos, e uma ferramenta que aceita a continuidade entre imagem e evento, entre ver e tornar-se.

Meninos Maxakali da Aldeia Vila Nova sobem nas árvores como macacos,
lembrando as primeiras imagens encontradas no acervo durante minha Iniciação Científica,
que foram utilizadas no filme POPXOP: Os cantos do Macaco-Espírito.
De tal imagem, ou acontecimento, sugeria então o início de um yãmĩyxop (ritual),
não marcado solenemente como acontece em nossas cerimônias, mas disperso,
difuso, invisível a olhos destreinados.


Ana Carolina Estrela da Costa





Pra quem quiser conhecer mais sobre o tema, aí vão as referências:

Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Derrida, Jacques. [1967] Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

Kopenawa, David. 2004. In.: Viveiros de Castro, Eduardo. A Floresta de Cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. In.: Cadernos de Campo. N. 14-15.

Tugny, Rosângela Pereira de. Escuta e Poder na Estética Maxakali. Museu do Índio. Rio de Janeiro, 2011.




[1] Debord, comentário 1 (mas vale compartilhar no facebook!)